segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

LENDAS DE XANGÔ

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A mitologia nos conta a história de Xangô, que começa com o surgimento dos povos iorubás e sua primeira capital, Ilê-Ifé, fala da fundação de Oió e narra os momentos cruciais da vida de Xangô:
“Num tempo muito antigo, na África, houve um guerreiro chamado Odudua, que vinha de uma cidade do Leste, e que invadiu com seu exército a capital de um povo então chamado ifé. Quando Odudua se tornou seu governante, essa cidade foi chamada Ilê-Ifé. Odudua teve um filho chamado Acambi, e Acambi teve sete filhos, e seus filhos ou netos foram reis de cidades importantes. A primeira filha deu-lhe um neto que governou Egbá, a segunda foi mãe do Alaqueto, o rei de Queto, o terceiro filho foi coroado rei da cidade de Benim, o quarto foi Orungã, que veio a ser rei de Ifé, o quinto filho foi soberano de Xabes, o sexto, rei de Popôs, e o sétimo foi Oraniã, que foi rei da cidade Oió, mais tarde governada por Xangô.
“Esses príncipes governavam as cidades que mais tarde foram conhecidas como os reinos que formam a terra dos iorubás, e todos pagavam tributos e homenagens a Odudua. Quando Odudua morreu, os príncipes fizeram a partilha dos seus domínios, e Acambi ficou como regente do reino de Odudua até sua morte, embora nunca tenha sido coroado rei. Com a morte de Acambi, foi feito rei Oraniã, o mais jovem dos príncipes do império, que tinha se tornado um homem rico e poderoso. O obá Oraniã foi um grande conquistador e consolidou o poderio de sua cidade.
“Um dia Oraniã levou seus exércitos para combater um povo que habitava uma região a leste do império. Era uma guerra muito difícil, e o oráculo o aconselhou a ficar acampado com os seus guerreiros num determinado sítio por um certo tempo antes de continuar a guerra, pois ali ele haveria de muito prosperar. Assim foi feito e aquele acampamento a leste de Ifé tornou-se uma cidade poderosa. Essa próspera povoação foi chamada cidade de Oió e veio a ser a grande capital do império fundado por Odudua. O rei de Oió tinha por título Alafim, termo que quer dizer o Senhor do Palácio de Oió.
“Com a morte de Oraniã, seu filho Ajacá foi coroado terceiro Alafim de Oió. Ajacá, que tinha o apelido de Dadá, por ter nascido com o cabelo comprido e encaracolado, era um homem pacato e sensível, com pouca habilidade para a guerra e nenhum tino para governar. Dadá-Ajacá tinha um irmão que fora criado na terra dos nupes, também chamados tapas, um povo vizinho dos iorubás. Era filho de Oraniã com a princesa Iamassê, embora haja quem diga que a mãe dele foi Torossi, filha de Elempê, o rei dos nupes. Esse filho de Oraniã tinha o nome Xangô, e era o grande guerreiro que governava Cossô, pequena cidade localizada nas cercanias da capital Oió.
“Xangô um dia destronou o irmão Ajacá-Dadá, e o exilou como rei de uma pequena e distante cidade, onde usava uma pequena coroa de búzios, chamada coroa de Baiani.
“Xangô foi assim coroado o quarto Alafim de Oió, o obá da capital de todas as grandes cidades iorubás.
“Xangô procurava a melhor forma de governar e de aumentar seu prestígio junto ao seu povo. Conta-se que, para fortalecer seu poder, Xangô mandou trazer da terra dos baribas um composto mágico, que acabaria, contudo, sendo sua perdição. O rei Xangô, que depois seria conhecido pelo cognome de o Trovão, sempre procurava descobrir novas armas para com elas conquistar novos territórios. Quando não fazia a guerra, cuidava de seu povo. No palácio recebia a todos e julgava suas pendências, resolvendo disputas, fazendo justiça. Nunca se quietava. Pois um dia mandou sua esposa Iansã ir ao reino vizinho dos baribas e de lá trazer para ele a tal poção mágica, a respeito da qual ouvira contar maravilhas. Iansã foi e encontrou a mistura mágica, que tratou de transportar numa cabacinha.
“A viagem de volta era longa, e a curiosidade de Iansã sem medida. Num certo momento, ela provou da poção e achou o gosto ruim. Quando cuspiu o gole que tomara, entendeu o poder do poderoso líquido: Iansã cuspiu fogo!
“Xangô ficou entusiasmadíssimo com a nova descoberta. Se ele já era o mais poderoso dos homens, imaginem agora, que tinha a capacidade de botar fogo pela boca. Que inimigo resistiria? Que povo não se submeteria? Xangô então passou a testar diferentes maneiras de usar melhor a nova arte, que certamente exigia perícia e precisão.
“Num desses dias, o obá de Oió subiu a uma elevação, levando a cabacinha mágica, e lá do alto começou a lançar seus assombrosos jatos de fogo. Os disparos incandescentes atingiam a terra chamuscando árvores, incendiando pastagens, fulminando animais. O povo, amedrontado, chamou aquilo de raio. Da fornalha da boca de Xangô, o fogo que jorrava provocava as mais impressionantes explosões. De longe, o povo escutava os ruídos assustadores, que acompanhavam as labaredas expelidas por Xangô. Aquele barulho intenso, aquele estrondo fenomenal, que a todos atemorizava e fazia correr, o povo chamou de trovão.
“Mas, pobre Xangô, a sorte foi-lhe ingrata. Num daqueles exercícios com a nova arma, o obá errou a pontaria e incendiou seu próprio palácio. Do palácio, o fogo se propagou de telhado em telhado, queimando todas as casas da cidade. Em minutos, a orgulhosa cidade de Oió virou cinzas.
“Passado o incêndio, os conselheiros do reino se reuniram, e eviaram o ministro Gbaca, um dos mais valentes generais do reino, para destituir Xangô.
“Gbaca chamou Xangô à luta e o venceu, humilhou Xangô e o expulsou da cidade. Para manter-se digno, Xangô foi obrigado a cometer suicídio. Era esse o costume antigo. Se uma desgraça se abatia sobre o reino, o rei era sempre considerado o culpado. Os ministros lhe tiravam a coroa e o obrigavam a tirar a própria vida.
“Cumprindo a sentença imposta pela tradição, Xangô se retirou para a floresta e numa árvore se enforcou.
“Oba so!”, “Oba so!”
“O rei se enforcou!”, correu a notícia.
“Mas ninguém encontrou seu corpo e e logo correu a notícia, alimentada com fervor pelos seus partidários, que Xangô tinha sido transformado num orixá. O rei tinha ido para o Orum, o céu dos orixás. Por todas as partes do império os seguidores de Xangô proclamavam:
“Oba ko so!”, que quer dizer “O rei não se enforcou!”
“Oba ko so!”, “Oba ko so!”.
“Desde então, quando troa o trovão e o relâmpago risca o céu, os sacerdotes de Xangô entoam: “O rei não se enforcou!” “Oba ko so! Obá Kossô!” “O rei não se enforcou”.”

2

" Xangô era rei de Oió, o mais temido e respeitado de todos os reis. Mesmo assim, um dia seu reino foi atacado por uma grande quantidade de guerreiros que invadiram a cidade violentamente, destruindo tudo e matando soldados e moradores numa tremenda fúria assassina. Xangô reagiu e lutou bravamente durante semanas. Um dia, porém, percebeu que a guerra tornara-se um caminho sem volta. Já havia perdido muitos soldados e a única saída seria entregar sua coroa aos inimigos. Resolveu então procurar por Orunmilá e pedir-lhe um conselho para evitar a derrota quase certa. O adivinho mandou que ele subisse uma pedreira e lá aguardasse, pois receberia do céu a iluminação do que deveria ser feito. Xangô subiu e quando estava no ponto mais alto do terreno foi tomado de extrema fúria. Pegando seu oxê, machado de duas lâminas, começou a quebrar as pedras com grande violência. Estas ao serem quebradas, lançavam raios tão fortes que em instantes transformaram-se em enormes línguas de fogo que, espalhando-se pela cidade, mataram uma grande quantidade de guerreiros inimigos. Os que restaram, apavorados, procuraram os soldados de Xangô e renderam-se imediatamente pedindo clemência. Levados até ao rei, os presos elegeram um emissário para servir-lhes de porta voz. O homem escolhido foi logo se atirando aos pés de Xangô. Desculpou-se pedindo perdão. Humilhando-se, explicou que lutavam, não por vontade própria, e sim forçados por um monarca, vizinho de Oió, que tinha um grande ódio de Xangô e os martirizava impiedosamente. Xangô, altamente perspicaz, enxergou nos olhos do guerreiro que ele falava a verdade e perdoou a todos, aceitando-os como súditos de seu reino. Assim tornou-se conhecido como o orixá justiceiro que perdoa quando defrontado com a verdade, mas que queima com seus raios os mentirosos e delinqüentes."

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- Xangô no Novo Mundo

No seu auge, o império de Oió englobava as mais importantes cidades do mundo iorubá, tendo assim o culto a Xangô, que era o orixá do rei ou obá de Oió, portanto o orixá do império, sido difundido por todo o território iorubano, o que não era muito comum, pois cada cidade ou região tinha os seus próprios orixás tutelares e poucos eram os que recebiam culto nas mais diversas cidades, como Exu, Ossaim e Orunmilá. O fato é que o apogeu da dominação da cidade de Oió sobre as outras resultou numa grande difusão do culto a Xangô. Durante muito tempo a força militar de Oió protegeu os iorubás de invasões inimigas e impediu que seu povo fosse caçado e vendido por outros africanos ao tráfico de escravos destinado ao Novo Mundo, como acontecia com outros povos da África.
Quando o poderio de Oió foi destruído no final do século XVIII por seus inimigos, tanto a capital Oió como as demais cidades do império desmantelado ficaram totalmente desprotegidas, e os povos iorubás se transformaram em caça fácil para o mercado de escravos. Foi nessa época que o Brasil, assim como outros países americanos, passou a receber escravos iorubás em grande quantidade. Vinham de diferentes cidades, traziam diferentes deuses, falavam dialetos distintos, mas tinham todos algo em comum: o culto ao deus do trovão, o obá de Oió, o orixá Xangô.
Isso explica a enorme importância que Xangô ocupa nas religiões africanas nas Américas, pois foi exatamente nesse momento histórico da chegada dos iorubás que as religiões africanas se constituíram nas Américas, isto é, no século XIX. Particularmente no Brasil, os escravos recém-chegados eram trazidos não mais para o trabalho nas plantações e nas minas do interior, onde ficavam dispersos, mas sim nas cidades, onde eram encarregados de fazer todo o tipo de serviço urbano, morando longe de seus proprietários, vivendo em bairros com grande concentração de negros escravos e libertos, e tendo assim maior liberdade de movimento e organização, podendo se reunir nas irmandades católicas, com novas e amplas oportunidades para recriarem aqui a sua religião africana.
Nascido da iniciativa de negros iorubás que se reuniam numa irmandade religiosa na igreja da Barroquinha, em Salvador, o primeiro templo iorubá da Bahia foi, emblematicamente, dedicado a Xangô. Seus ritos, que em grande parte reproduziam a prática ritualística de Oió, acabaram por moldar a religião que viria a se constituir no candomblé, e cuja estruturação hierárquica sacerdotal em grande parte reconstituía simbolicamente a organização da corte de Oió, isto é, a corte de Xangô, como veremos adiante. Emblemas que na África eram exclusivos do culto a Xangô foram generalizados entre nós para o culto de todos os orixás, como o uso do colar ritual de iniciação chamado quelê.
Por estranha ironia, a nação de Xangô na Bahia acabou recebendo o nome de Queto, que é a cidade de Oxóssi, e não o nome de Oió, cidade de Xangô, como era de se esperar. Mas essa denominação deve ter ocorrido muito tempo depois da fundação da Casa Branca do Engenho Velho, o primeiro terreiro de Xangô, de cujo chão Oxóssi é o dono, e que serviu de modelo a todo o candomblé. A denominação nação queto deve ter se dado já no século XX, quando angariavam grande prestígio e visibilidade dois terreiros que também fazem parte do núcleo de templos fundantes do candomblé: o terreiro do Gantois, dissidente da Casa Branca, e dedicado a Oxóssi, que era o orixá da cidade do Queto, e o terreiro do Alaketu, cuja fundação é atribuída a duas princesas originárias da cidade do Queto, e que também eram do grupo da Barroquinha. A expressão “nação queto” para designar o ramo do candomblé de origem iorubá que se constituiu a partir da linhagem da Casa Branca do Engenho Velho é recente e não era usada antes de 1950. O nome mais comum era nação nagô, ou jeje-nagô. A própria Mãe Aninha, que fundou outro templo dissidente da Casa Branca, o Axé Opô Afonjá, e que, como o próprio nome indica, também é dedicado a Xangô, costumava dizer nos anos 1930: “Minha casa é nagô puro”.
Mas no Rio Grande do Sul, até hoje a expressão “nação Oió”, ou “Oió-ijexá” designa os terreiros de batuque de origem iorubá. A marca de Xangô continua ali muito presente.
Em Pernambuco, a primazia de Xangô acabou por dar nome a toda a religião dos orixás, que naquele e em outros estados do Nordeste é conhecida como xangô.
No Maranhão, dois templos de tradições diferentes disputam o posto de casa fundante do tambor-de-mina: a Casa das Minas, de culto exclusivo aos voduns dos povos fons ou jejes, e a Casa de Nagô, que, como o próprio nome aponta, dedica-se ao culto dos orixás, os deuses nagôs ou iorubás, além de cultuar também voduns e encantados. Ao contrário da Casa das Minas, que não teve terreiros descendentes e hoje se encontra em franco processo de extinção, a Casa de Nagô é a origem de vasta linhagem de terreiros, que se espalharam pelo Maranhão e Pará e chegaram até o Rio de Janeiro e São Paulo, ou mais além. A Casa das Minas de Tóia Jarina, de Diadema, é originária dessa matriz. Pois o patrono da Casa de Nagô não é outro senão Badé, nome pelo qual Xangô é reverenciado nos templos do tambor-de-mina.
Longe daqui, no Caribe, a palavra xangô também dá nome à religião dos orixás praticada em Trinidad-Tobago, nome que também pode ser observado entre populações americanas de origem caribenha na costa Atlântica do sul dos Estados Unidos.
Em Cuba, onde a santeria é tão viva e diversificada como o candomblé brasileiro, são muitos os indícios da supremacia ritual de Xangô. Talvez o mais emblemático seja o fato de que, durante a iniciação ritual, apenas os sacerdotes dedicados a Xangô, segundo a tradição cubana, têm o privilégio sobre todos os demais de receber na cabeça o sangue sacrificial, o que indicaria que o orixá do trovão tem precedência protocolar, e seu tambor é o mais sagrado instrumento musical da santeria.
Onde quer que tenha se formado alguma manifestação americana da religião dos orixás, seja o candomblé, o xangô, o batuque, o tambor-de-mina, a santeria cubana, ou o xangô caribenho, a memória do orixá Xangô, o obá de Oió, manteve o realce que o orixá do império detinha na África. Como obá, Xangô também era o mais alto magistrado de seu povo, o juiz supremo. Sua relação com o ministério da justiça fez dele, entre os seguidores das religiões dos orixás, o senhor da justiça. Num mundo de tantas injustiças, desigualdades sociais, marginalização, abandono e falta de oportunidades sociais de todo tipo, como este em que vivemos, o orixá da justiça ganhou cada vez maior importância. Seu prestígio foi consolidado. Reiterou-se a posição de Xangô como o grande patrono do candomblé e grande protetor de todo aquele que se sente de algum modo injustiçado.

4- A corte do rei

A importância de Xangô na constituição do candomblé, que é brasileiro, pode ser identificada também quando examinamos as estruturas hierárquicas e a organização dos papéis sacerdotais do candomblé em comparação com o ordenamento dos cargos da própria corte de Oió, a cidade de Xangô. Não há dúvida que as sacerdotisas e sacerdotes que fundaram os primeiros templos de orixá no Brasil tinham grande intimidade com as estruturas de poder que governavam a cidade do Alafim. O candomblé é, de fato, uma espécie de memória em miniatura da cidade africana que o negro perdeu ao ser arrancado de seu solo para ser escravizado no Brasil.
Vejamos alguns dos cargos mais importantes da corte de Oió e sua correspondência com a hierarquia do candomblé de nação nagô.
Basorun – primeiro ministro e presidente do conselho real, que tinha mais poder que o próprio rei, exercendo também a função de regente quando da morte do rei até a ascensão do sucessor. No candomblé é título dado a homem que ajuda na administração do terreiro, um dos membros do corpo de ministros em terreiros dedicados a Xangô.
Alààpínní – chefe do culto de egungum. No Brasil, igualmente alto sacerdote do culto dos ancestrais.
Balògún – chefe militar. No candomblé, cargo masculino de chefia da casa de Ogum. O falecido oluô Agenor Miranda Rocha, foi, por mais de 70 anos, o balogum da Casa Branca do Engenho Velho.
Lágùnnòn – embaixador do rei que tinha como encargo o culto ao orixá Ocô, divindade da agricultura. No candomblé, espécie de ajudante do pai-de-santo na provisão do terreiro.
Akinikú – chefe dos rituais fúnebres. No Brasil, oficial do axexê, que pode ser um babalorixá ou ialorixá ou algum ebômi ou ogã especializado nos ritos mortuários.
Asípa – representante dos governadores das aldeias na corte de Oió e encarregado do culto ao orixá Ogum. No Brasil, dignidade masculina.
Isugbin – corpo de tocadores e musicistas do palácio. No candomblé são chamados alabês, nome que na África era dado aos escarificadores, os que faziam os aberês, as marcas faciais identificadoras da origem.
Ìlàrí – corpo de guardas da corte e de mulheres. Adoradores de Oxóssi e Ossaim, eram também uma espécie de mensageiros e provedores reais. No candomblé, sacerdotes que cuidam da casa de Ossaim.
Èkejì òrìsà – literalmente, a segunda pessoa do orixá, cargo sacerdotal da corte do Alafim, sacerdotisa que não incorpora o orixá, mas que cuida de seus objetos sagrados. No candomblé, equede, todas mulher não-rodante confirmada para cuidar do orixá em transe e de seus pertences rituais. O cargo, elevado na África, deu às equedes posição de relevo também no candomblé, onde têem o grau de senioridade.
Ìyá-nàsó – mãe do culto do Xangô do rei (divindade pessoal). No Brasil, nome de uma das fundadoras do candomblé e título feminino.
Ìyáalémonlé – encarregada de cuidar do assentamento pessoal do rei. Entre nós, quem cuida do assentamento principal do pai-de-santo.
Ìyá-lé-òrí – mãe dos ritos de oferecimento a cabeça do rei, mantém a representação material da cabeça do rei em sua casa. No candomblé preside o bori.
Ìyá mondè ou bàbá – Mulher que cultua os espíritos dos reis mortos. Chamam-na também de Bàbá. O alafim dirige-se a ela como “pai”, pois elas detêm a autoridade do “pai”, como as dirigentes da umbanda brasileira, também chamadas de babá.
Ìyá-le-agbò – prepara os banhos rituais do rei. No candomblé, mulher que cuida dos potes de amassi.
Ìyá-kèré – chefe das mulheres ilaris; é ela quem coroa o rei no ato de sua entronização. A atribuição, mantida, é hoje no candomblé da competência de pais e mães-de-santo que colocam no trono o novo chefe do terreiro nas ocasiões de sucessão.

Muitos outros títulos do candomblé foram tomados de outras cidades e instituições que não a corte de Oió, mas é inescondível a importância da cidade de Xangô na estruturação dos terreiros brasileiros de origem iorubá. De toda sorte, são variadas as adaptações, muitas vezes esvaziando-se o cargo de suas funções originais.
Com o sentido de reforçar a idéia do terreiro de candomblé como sucedâneo da África distante, para legitimar suas estruturas de mando e valorizar sua origem, cargos de tradição africana são recuperados e adaptados com certa liberdade pelos dirigentes brasileiros. Assim surgiram os obás ou mogbás de Xangô, conselho de doze ministros do culto de Xangô, instituído inicialmente no terreiro Axé Opô Afonjá na década de 1930 por sua fundadora Mãe Aninha Obabií, assessorada pelo babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, e depois reinstalado nos mais diferentes terreiros que têm Xangô como patrono. Os obás brasileiros de Xangô têm funções diversas daquelas africanas, mas os nomes dos cargos são referência constante à vida político-administrativa dos iorubás antigos. Eles são divididos em ministros da direita, com direito a voto, e ministros da esquerda, sem direito a voto. Cada um deles conta com dois substitutos, o otum e o ossi.
O conjunto dos obás da direita criados por mãe Aninha é constituído dos seguintes cargos: Abíódún (nome que designa aquele nascido no dia da festa); Àre (título que se dá a uma pessoa proeminente da corte); Àrólu (o eleito da cidade); Tèla (nome masculino da realeza de Oió); Odofun (cargo da sociedade Ogboni); Kakanfò (título do general do exército). Os da esquerda são: Onansòkun (pai oficial do obá de Oió); Aressá (título do obá de Aresá); Eleryin (título do obá de Erin); Oni Koyí (título do obá de Ikoyi); Olugbòn (título do obá de Igbon); e Sòrun (chefe do conselho do rei de Oió). Estes nomes designam hoje postos sacerdotais, dignidades religiosas; na África designavam cargos de homens poderosos que controlavam a sociedade ioruba e suas cidades.
Um rei africano era, antes de mais nada, um guerreiro. Guerras, conquistas, povoamento de novas terras, escravidão, descoberta e renascimento, tudo isso faz parte da história de Xangô, rei e guerreiro, como faz parte das memórias de nossa própria civilização de brasileiros. Mas Xangô é mais que história da África e mais que história do Brasil. Seu duplo machado visa a justiça para cada um dos dois lados que se opõem na contenda, suas pedras-de-raio são o santuário guardião das esperanças de tanta gente que padece em conseqüência das mazelas de nossa sociedade: desemprego, falta de oportunidades, incompreensão e dificuldade no trabalho, escassez de meios de sobrevivência, perseguição e disputas insanas, inveja, complicações legais de toda sorte, e tantas outras coisas ruins. Apelar a Xangô, para o devoto, é buscar alento, realimentar esperanças, prover-se de forças para a difícil aventura da vida.
Mas no terreiro em festa, sob o roncar frenético dos tambores, a dança de Xangô não é tão somente demonstração de energia e de força marcial, de cadência e de vitalidade, mas igualmente harmonia, graça e sensualidade. Xangô é duro, mas também se compraz com o bom da vida. O paladar de Xangô lembra as qualidades do bom glutão que não dispensa jamais o prazer da boa mesa, tanto que até nos faz pensar nele como um rei gordo e guloso. Tanto é assim que suas oferendas votivas devem ser sempre servidas em grande quantidade, pois Xangô aprecia que seus súditos comam muito e bem.
Seu prato predileto é o amalá, comida feita à base de quiabo, camarão, pimentas de várias qualidades, e tantos outros condimentos que são verdadeiras iguarias, utilizados pelas filhas-de-santo que muito apreciam e disputam a preparação da comida para os deuses. A comida servida no terreiro serve também para “reunir gente”, e Xangô é o orixá que mais as acolhe, pois toda corte é repleta de súditos e não seria diferente no terreiro, onde há sempre muita gente, muita dança e muita comida.
Além de orixá comilão, Xangô também é o grande amante e teve muitas mulheres como contam seus mitos. Um deles relata que Xangô era um rei poderoso, um dia apareceu em seu reino um grande animal que devorava a todos, homens, mulheres e crianças. Xangô, acompanhado de suas três mulheres resolveu enfrentar o animal monstruoso. Xangô amava suas esposas, mas amava também todos os homens e mulheres que o acercavam, e nada mais natural do que defendê-los de tal criatura. O ser monstruoso rugia e toda a terra tremia. Xangô não quis soldados para vencer o animal. Xangô lançou chamas de sua boca e derrubou o animal matando-o depois num só golpe com seu oxé. Vitorioso, Xangô cantou e dançou, estava feliz. Dali em diante foi ainda mais amado pelos homens e mulheres de seu povo e por todos aqueles que ouviram falar de seu feito.
No Brasil, o aspecto erótico da representação de Xangô foi muito atenuado em comparação a Cuba, onde seus gestos de dança insinuam relações sexuais e seus objetos de forma fálica enfatizam seu gosto pelo sexo. Mas mesmo entre nós é o orixá de muitas esposas. Tantas mulheres e tantas paixões carnais não reforçam e são a confirmação de que a vida pode ser plena das doçuras e gozos do amor? O que queremos dizer é que Xangô não nos remete tão somente aos aspectos sérios, circunspectos e duros dos compromissos do dia-a-dia, mas nos faz lembrar, sim, o tempo todo, que a vida é muito boa para ser vivida, e por isso mesmo temos que lutar por ela sem descanso. É por essa razão que o fiel sempre pede passagem para o rei, gritando para o povo reunido em festa: “Deixai passar, deixar passar Sua Majestade”, “Kaô, kaô Kabiessi”.



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