O episódio começa com um rei muito preocupado. Naquele tempo, as preocupações reais estavam sempre ligadas a guerras e aqui não é diferente. Assim, após muito pensar, o rei decidira ir consultar-se com o deus dos oráculos para encontrar uma solução para o caso.
- Minhas apreensões crescem a cada dia, Orunmilá! – disse ele, face a face com o deus.
- Muito bem, diga quais são suas apreensões – disse o deus, preparando já o seu material divinatório.
- Cheguei a uma conclusão aflitiva sobre uma grande deficiência que pesa sobre o meu reino!
- Bem sei qual seja – disse Orunmilá, sem a menor surpresa, como convém à classe dos adivinhadores.
O rei parou um momento e, como estivesse muito angustiado, resolveu encurtar o negócio.
- Desculpe, esqueci-me dos seus maravilhosos dons!- disse ele, aliviado. – Para poupá-lo, então, de algo que já conhece perfeitamente, vou perguntar-lhe, apenas: que devo fazer acerca disto?
Orunmilá permaneceu absolutamente sereno.
- Diga sempre qual é o problema – disse ele, em seguida. – Aqui como em tudo, há regras.
- Regras? – disse o rei, atrapalhado.
O rosto do oráculo permaneceu sereno. Os olhos, no entanto, ganharam uma certa expressividade.
- Oh, sim, as regras da adivinhação! – disse o rei. – Passo a passo, aquele negócio todo, não é?
Silêncio profético-sapiencial.
- Bem – disse o rei, recomeçando. – O fato é que, depois de muitas observações, cheguei a conclusão de que as fronteiras do meu reino são totalmente inseguras!
- Já sabia – disse Orunmilá, serenamente.
- Se já sabe tudo por que razão, então, devo repetir as coisas? – disse o rei, impacientando-se.
Orunmilá, sem jamais perder a fleuma, retrucou:
- Ninguém repete nada. Você diz uma coisa, eu digo que já sei, você vai adiante e eu também, até o momento do oráculo. Ninguém repete nada, entendeu?
- Está bem, está bem! Diga, então, o que devo fazer para tornar seguras as minhas fronteiras!
Tudo dito, Orunmilá chacoalhou os búzios e lançou-os sobre o chão.
- O que diz aí? – falou o rei, tentando ler no amontoado de conchinhas alguma coisa.
- Diz que você deve oferecer aos deuses uma peça de tecido negro.
O rei aproximou a cara dos búzios, com ar de extraordinária curiosidade.
- Um pano negro, é? – disse ele, abismado. Em seguida, adotando um ar de cumplicidade afável, completou – diga-me uma coisinha: onde, exatamente, está dito isso?
Após efetuar um longo estudo das peças, ele próprio exclamou, afinal:
- Já sei, sabichão! É esta conchinha escura aqui, não é?
O ar severo de Orunmilá, porém, fê-lo silenciar instantaneamente.
- Muito bem, e depois? – disse o rei.
- Este tecido deverá ser rasgado por uma mulher virgem.
- Rasgado por uma mulher virgem! – repetiu o rei, maravilhado.
- O que eu falei sobre repetições? – disse Ifá, perdendo de vez a paciência.
- Perdão, grande deus! E o que esta jovem deverá fazer com os pedaços do pano preto rasgado?
- Que ela os lance sobre a parte mais desprotegida do seu reino. E adeus.
O rei, maravilhado daquela receita, pensou muito e chegou à conclusão de que sua filha deveria ser a mulher encarregada de cumprir o oráculo. Abandonando às pressas a tenda do deus, ele correu, então, por todo o reino, em busca do tal tecido preto.
Infelizmente, não havia tecido preto em parte alguma.
- Como não, alimárias? – esbravejou ele às costureiras do reino.
- Perdão, alteza, mas quem vai usar um tecido preto debaixo deste sol causticante?
- Vocês todas, se eu perder a guerra! Alimárias! Animais de tração, todas vocês!
Tomado, então, pelo mais puro desespero, o rei correu até o palácio real para chamar a sua filha.
- Iansã! Iansã! – bradou ele, alucinadamente, pelos corredores.
De um dos quartos, surgiu uma jovem negra de beleza encantadora a trajar um manto todo preto. Tomando-a nos braços, o rei despejou-lhe no rosto o mau-hálito dos aflitos:
- Minha fi8lha, venha comigo! Só você pode salvar nosso reino!
Arrastada à força para fora do palácio, a jovem arregalou os seus belos olhos amendoados.
- Para onde está me levando, meu pai? – disse ela, envolta no manto preto.
Para piorar as coisas, assim que ambos chegaram ao local onde deveria dar-se a invasão, recebeu a ordem de despir imediatamente o manto.
- O que disse, meu pai?- gritou ela, arregalando ainda mais as amêndoas oculares.
Sem lhe dar ouvidos, o rei começou a puxar o manto da jovem até quase esgarçá-lo.
- Não, pare! Por que devo despir-me a céu aberto? – gritou ela.
- É para salvar o reino! O oráculo ordenou que uma virgem pura e imaculada rasgue um tecido negro no ponto mais vulnerável da cidade. Vamos, faça o que eu digo!
Então, ao saber que era para uma causa tão nobre, Iansã acatou finalmente a ordem.
- Está bem, eu o farei – disse ela, despedindo-se, num único gesto, de seu manto negro.
A cor da sua pele era tão escura quanto a do manto que despira. Na verdade, parecera restar em seu corpo apenas um pequeno pedaço do tecido aderido um pouco abaixo do seu ventre.
- Tire-o também! – bradou o pai, temeroso de que a ausência daquele retalhinho pudesse comprometer o arranjo. Logo, porém, desfez-se o engano, e a jovem pôde começar a sua parte no trabalho.
- Vamos, rasgue-o! – disse o rei, e Iansã cortou a primeira tira do tecido negro.
Neste instante, porém, a jovem foi tomada por um júbilo misterioso, que a fez entoar uma cantiga.
- Oiá, ela cortou! Oiá, ela cortou! – cantarolava ela, como num transe.
A música, na verdade, era bem pobrezinha, limitando-se à repetição infinita deste estribilho.
O milagre, no entanto, aconteceu assim que a primeira tira caiu sobre o solo: instantaneamente ela transformou-se num espesso fio de água negra e corrente.
- Corte mais! Corte mais! – gritou o rei, a saltitar de alegria.
Iansã cortou logo outra tira e largou-a no mesmo lugar e, assim, foi cortando e cantando, enquanto aos seus pés formava-se um rio de águas negras e caudalosas.
E tanto foi que, quando a deusa terminou, estava vestida outra vez, porém não mais do mesmo manto, mas das águas negras de Odô Oiá, o novo rio que se formara nos limites extremos do reino.
(Retirado do livro: As melhores histórias da Mitologia Africana, Autores: A. S. Franchini e Carmen Seganfredo)
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